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Os segredos do negócio de Fátima

O recinto sagrado moderniza-se para o centenário e deverá atingir o melhor resultado financeiro de sempre com a vinda do Papa Francisco. Como se expandiram os negócios de Fátima e se prepara o futuro? Qual é o poder do santuário? Que polémicas e preconceitos ensombram a terra dos “milagres”? A VISÃO levanta o manto sobre a face materialista da cidade que, este ano, espera receber mais de 8 milhões de visitantes.

e é daqueles que emparelha Fátima na alegoria dos três “F’s”, ao lado do Fado e do Futebol, e ainda associa à Cova da Iria excursões, garrafões de tinto, tupperwares de panados e toalhas de piquenique, talvez sofra daquilo que Alexandre Marto batizou de “complexo Mateus Rosé”. Traduzido por miúdos, “é o preconceito alimentado por jornalismo armado em elitista e por quem desconhece a evolução e a importância deste destino turístico no mundo inteiro”, pica o dirigente da Associação Empresarial Ourém-Fátima (ACISO) enquanto a morcela de arroz e o chouriço assado fazem a sua aparição na mesa do restaurante O Crispim, pecaminosa veneração em território de devoções místicas.

É domingo à noite e o dono do grupo Fatima Hotels (dez hotéis, mil camas) resistiu a amesendar com o par de enviados do “demónio”. Alexandre Marto – que nega ramificações familiares com os pastorinhos de 1917 – está desconfortável com o “escrutínio impiedoso” dos media, mais dados ao folclore: “Agora, a moda é falar no ucraniano que anda por aí a vender latas com ar de Fátima”. Para ele, o atual retrato do local de peregrinação é a cores e não cabe na moldura de outrora. “São cada vez mais os estratos sociais elevados, gente formada, académicos, banqueiros, que se deslocam a Fátima”, garante o empresário. “A maior parte dos turistas não é católica, alguns crentes até estão desalinhados do discurso oficial da Igreja, mas todos procuram satisfazer aqui uma forte necessidade espiritual.” Resumindo: nos últimos 15 anos, Fátima tornou-se “um espaço de fé vivido em liberdade. A Guerra Fria ficou lá atrás, já não se ouvem discursos anticomunistas no altar e vai diminuindo a presença das camadas sociais mais baixas”, refere, como quem anuncia a boa nova. Falta, pois, iluminar a autoestrada para a redenção: “Não peço para gostarem de Fátima”, adverte. “Mas peço que olhem para isto e me digam se define ou não o caráter de um País. E, nesse caso, pergunto: é um ativo ou um passivo?”

O PARAÍSO AQUI AO LADO?

Na pergunta está a resposta. E nela toda uma mensagem sobre Fátima.

No novo postal ilustrado da região, o número 7, de reminiscências sagradas, parece multiplicar-se. Tudo à bolina dos negócios, com o sobrenatural em fundo. Existem, pelo menos, sete zonas do mundo onde o número de turistas mais cresce (Portugal, Espanha, EUA, Coreia do Sul, França, Brasil, Reino Unido). Os estabelecimentos hoteleiros em Fátima são 70 e vêm outros a caminho: o Áurea, um 4 estrelas com spa e capela do empresário de arte sacra Manuel da Conceição, abrirá em breve.

Das quase 730 mil dormidas de 2015, cerca de 70 por cento foram de estrangeiros. Se a elas juntarmos as reservas nos alojamentos das instituições religiosas, o número supera o milhão de pessoas, com tendência para acrescentar mais 200 mil noites este ano. Não é preciso ser vidente para profetizar que os ganhos recentes, mais de 27 milhões de euros, serão superados com a visita do Papa. “Não ando a converter pessoas”, assegura Marto. “Mas o refresh está em curso. Este Papa tem uma mentalidade mais aberta e Fátima é um destino para as novas gerações.” O milagre é de tal ordem que, segundo o hoteleiro, foi a “geringonça” que nos governa que, pasme-se, “melhor compreendeu o potencial deste destino”, financiando-o. O elogio vai direitinho para a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho. “Há 15 anos era impossível receber um tostão para promover Fátima”, reconhece o empresário hoteleiro à VISÃO. Há dias, o Governo reforçou o empenho aprovando o decreto-lei que autoriza ajustes diretos para obras até 5,1 milhões de euros em Ourém, a pretexto da visita do Papa.

No declive que leva à Capelinha das Aparições cruzam-se tratores, alisa-se o terreno. Nos edifícios das ruas centrais de Fátima, sobretudo hotéis, engatam-se andaimes, pintam-se paredes, cimentam-se varandas. A cidade aparecerá de cara lavada quando chegar maio, maduro maio. Por isso, o gelo de janeiro é aproveitado para renovar espaços, dar férias a funcionários e até cerrar os taipais, por falta temporária de clientela. Por agora, Fátima enregela até aos ossos e a máquina registadora descansa de multidões. Atropelos só mesmo nas filas para o tocheiro do recinto, embora os responsáveis do santuário preferissem ver parte das velas transformadas “em pão para os pobres”.

Sandra Mota, chegada de Genebra (Suíça), passa ao largo. Vem corresponder a um desejo da filha e “recuperar forças para viver mais um ano fora do País”. Se o trabalho deixasse, regressaria para ver o Papa “custasse o que custasse”.
As lojas que se mantêm abertas este mês têm cestos à entrada, com bugigangas religiosas a um euro, para atrair os portugueses, os menos gastadores. Anabela Lopes não seguiu a tática do chamariz. Na Sanctus, outras geografias ditam leis: “Os brasileiros levam mais quantidade, mas coisas de pouco valor.” Os americanos, conhecedores, “chegam a gastar 200 euros e querem madeiras ou porcelanas”. Os orientais “olham para tudo, querem ver a marca, se for made in Portugal melhor”, descreve a proprietária. “Regateiam, mas gastam muito. Já me pagaram com uma nota de 500 euros. Fui logo ao banco ver se era verdadeira!”, conta a lojista, que entretanto devolveu um conjunto de “Nossas Senhoras” de fabrico chinês à procedência: no lugar do imaculado coração e do rosário, a Virgem “trazia ursinhos agarrados ao pescoço”.

O grosso da mercadoria alusiva ao centenário chegará lá para março, mas o terço comemorativo já vai em quase 122 mil exemplares vendidos à razão de 12 euros cada. Nas lojas encontra-se também o perfume 13. “Inspirado” nas “aparições” e nos “relatos da época”, cuja fragrância “é uma homenagem à inocência”, possui “aromas do campo sob a sombra de uma azinheira” e surpreende “pela sua profundidade celestial”, reza o folheto. A eau de toilette mariana custa quase 20 euros, mas parte da receita reverte para a construção de um hospital pediátrico em Coimbra.

Nas lojas, desespera-se pela chegada de mais objetos com a imagem do Papa Francisco – ou não estivesse Bergoglio bem cotado por estas bandas: a sua imagem de 65 cm, em gesso, pode custar 95 euros. “Este Papa vai trazer mais gente”, garante Helena Vieira, do Fatima Center, onde mochos, budas e bíblias se acotovelam entre os 10 e os 18 euros. Nas Galerias do Rosário, os clientes têm aparecido a solicitar paramentos alusivos ao centenário, mas ainda vão demorar umas semanas a chegar. Lenços para saudar o Papa, esses (a 1,50 euros), já estão por todo o lado. O comércio é ecuménico: os azulejos da Sagrada Família acolhem os peluches da Patrulha Pata, os gorros dos Mínimos repartem prateleiras com imagens do Padre Pio. Nenucos, latas de atum, garrafões de plástico, cachecóis da Seleção, bustos de João Paulo II e “amuletos da sorte com pedra vulcânica” convivem em abundância. Na loja e na livraria oficial do santuário, Fátima é também assunto de crianças: vendem-se as 118 cartas dos “Super-Heróis da Bíblia”, de João Batista a Moisés, “semelhantes ao Homem-
-Aranha, Super-Homem, X-Men, etc.”, o kit Jacinta (bloco, estojo, caneta e lápis) ou o puzzle dos pastorinhos. No resto, a velha Fátima continua a arder em cera nova: por menos de dois euros desfilam variedades incontáveis de ex-votos e derretem-se promessas.

ESMOLAS E MILHÕES

Por esta altura, a Câmara de Ourém também cumpriu o prometido, mas sem fazer grande fumaça disso. Qualificou diversas ruas, melhorou entradas da cidade, o saneamento básico, construiu um parque de lazer e anunciou novo quartel dos Bombeiros Voluntários. 
A corporação anda queixosa por não conseguir acudir a todas as solicitações da terra que superou a média anual de 6,7 milhões de visitantes. Nas ruas ouvem-se críticas à falta de WC’s e transportes públicos, e ao “estado lastimável” da estação de comboios. “Temos projetada uma vasta lista de intervenções, mas somos obrigados a fazê-lo muito lentamente, dada a velocidade a que se operam as coisas em Portugal”, assume Paulo Fonseca, líder do executivo camarário.
Os outros constrangimentos são da ordem do divino.

No final de 2013, em assembleia municipal, o autarca considerou “uma tremenda injustiça” o facto de a Igreja ser detentora de património no concelho avaliado em quase 350 milhões de euros, livre de IMI. “Não contesto a existência da Concordata”, adverte agora Paulo Fonseca à VISÃO, “mas se o Estado decide isentar a Igreja de pagamento de impostos deve retirar essa verba do Orçamento”, sugere o presidente do município afetado pela redução de receita. “Era como se eu dissesse que você não precisava de pagar o almoço e impusesse a um terceiro que o pagasse”, ironiza, lembrando as responsabilidades diárias da autarquia em terreno sagrado: “Quem tem de garantir água de qualidade nas torneiras, ruas tratadas, iluminação pública, resíduos domésticos recolhidos e saneamento básico é o município.”

O santuário, por seu lado, tem a fama de gerir bem o que é seu.

Mas as receitas são de outra ordem, apesar de permanecerem secretas há mais de uma década. A instituição “tem partes de empresa, de misericórdia e até de um governo”, afirmou em tempos Luciano Guerra, reitor do santuário de Fátima entre 1973 e 2008. Aquando das alegadas aparições de 1917, a Igreja não detinha qualquer património na região, mas em poucos anos adquiriu todas as propriedades em redor do local onde supostamente apareceu a Virgem aos pastorinhos Lúcia, Jacinta e Francisco. O terreno da Capelinha das Aparições e a casa de Lúcia foram doados pela família da carmelita ao santuário. Como recorda Patrícia Carvalho na obra Fátima: Milagre ou Construção? (Porto Editora), lançada este mês, a comercialização de terrenos para impor o santuário iniciou-se antes mesmo de a Igreja benzer oficialmente o fenómeno.
Desvios de verbas das esmolas, desfalques, foram noticiados nos primeiros anos de afirmação de Fátima, com desmentidos coléricos de jornais católicos. Na década de 1940, o jornal Voz da Fátima incluía uma secção intitulada “Ponha o seu dinheiro a render”, recomendando aos fiéis que o fizessem nos “bancos do céu”. O periódico garantia que os depósitos nos bancos terrenos se afiguravam perigosos por causa da guerra. Segundo um ofício encontrado no arquivo do Governo Civil de Leiria, a notícia levara a “gente ingénua dos campos” a seguir o conselho à letra, levantando o dinheiro das caixas económicas da altura.

Luciano Guerra, pragmático, sempre assumiu a preocupação de fazer render o dinheiro que entrava em Fátima. “Não somos tão celestiais que não precisemos de fazer face à vida terrena…”, justificava, em 1998. Desassombrado, o antigo reitor desaconselhava, pois, que se procurasse “um quase céu” em Fátima. Caso contrário, as pessoas arriscavam-se a encontrar, isso sim, “uma entidade humana com menos de angélica do que desejariam”, ficando assim “completamente dececionadas (…)”.

Quase cem anos volvidos sobre o “milagre” de Fátima, o atual reitor, Carlos Cabecinhas, revela poucos números (ver texto à parte) e prefere centrar o mote da ação diária do santuário na “partilha, rigor e transparência”, até porque, alega, “os recursos não são infinitos”.

Os da autarquia também não, apesar da redução da dívida.

Mas, para Paulo Fonseca, este é o ano de abolir o “ciúme” e deixar as querelas em banho-maria. “Tenho andado de mala às costas a promover Fátima e o concelho pelo mundo, muitas vezes deixando um sorriso sarcástico aos Velhos do Restelo e os resultados estão aí”, resume o autarca, destacando a parceria com a associação empresarial. “Não vi mais ninguém nessas tarefas, mesmo aqueles que se riem delas… Alguém acredita que os visitantes de Fátima aumentaram devido aos problemas nos países árabes? Alguém deixou de fazer férias no Egito para vir fazê-las em Fátima? Claro que não.”

A poucos meses do momento alto do ano, as ambições tocam o céu.
O Centenário das Aparições inspirou vários filmes sobre Fátima: duas produções de ficção internacional, uma nacional, dois documentários e uma película de animação 3D com o treinador José Mourinho e atriz Dalila Carmo a darem voz ao Papa e à Nossa Senhora.

“Promover” e “aumentar” são os verbos mais conjugados e abençoados por empresários e pela autarquia de Ourém. “Promover” a procissão das velas como potenciadora de mais noites de alojamento, “aumentar” a taxa de ocupação, a estada e o preço médio, e “promover” Fátima nos destinos emergentes: Ásia (Coreia do Sul e Filipinas) e a América (EUA, Brasil, Colômbia e México). “O esforço de promoção não se deve focar no País”, adverte Alexandre Marto. A ACISO tem quase 700 mil euros para “vender” Fátima ao mundo, com a maior fatia do projeto a ser assegurada por dinheiros públicos, nacionais e europeus.

AS SOMBRAS DO NEGÓCIO

Por estes dias, abundam as notícias de que a capacidade hoteleira de Fátima está há muito lotada para a visita do Papa. A novidade não seria sequer essa – o destino sempre esgota nos dias 12 e 13 de maio “mas sim os valores praticados. Na verdade, porém, persistem alguns mistérios.
Na Casa das Irmãs Dominicanas, um três estrelas onde a VISÃO se instalou na noite de 15 para 16 de janeiro, os pacotes de três dormidas no fim de semana da deslocação papal, a 190 euros cada noite, já não estavam, de facto, disponíveis, mas avisaram que poderia haver desistências.

Esta segunda, 23, a pesquisa no Booking, sítio de reservas hoteleiras na internet, devolvia ainda três unidades em Fátima com quartos entre os 750 e os 4200 euros por noite. “Há sempre quem se aproveite, mas o que é justo cobrar aqui na época alta é o preço de veraneio no Algarve em agosto. Acima disso, não faz sentido”, assume Alexandre Marto, para quem Fátima “continua a ser o destino turístico mais barato do País”.

Na residencial de Júlio Moreira e Maria Rosa, por cima da loja de artigos religiosos e regionais na avenida que leva o nome do mais importante bispo de Fátima (D. José Alves Correia da Silva), ainda se disponibilizavam quartos para duas pessoas, com WC no corredor, mas a reserva era para um mínimo de três noites, a 200 euros.

De onde vem, pois, a ideia de que Fátima já esgotou? “É a maneira que os habilidosos têm de guardar alguns quartos e, chegada a altura da visita do Papa, pedirem o preço que lhes der na gana”, garante Helena Cardinali, dirigente da delegação de Fátima do Sindicato dos Trabalhadores da Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Centro, que reclama 500 pessoas sindicalizadas na freguesia. “Há hotéis a fazer acordos com apartamentos de particulares, alugam-se varandas para dormir ou ver passar o Papa, entre 1000 e 1200 euros, e, em maio, sabe-se sempre de casos de turistas a dormir no chão ou de suítes onde ficam sete pessoas. Enfim, um autêntico faroeste”, resume.

Como o seu próprio apelido indica, Helena veio da área do espetáculo.
Largou 36 anos de vida circense e empregou-se num hotel gerido por freiras. Primeiro no refeitório, depois noutras tarefas. Está em Fátima há 18 anos, seis deles no sindicalismo. No início, quando se deslocava a plenários e congressos, a plateia franzia as sobrancelhas mal ouvia o apelido Cardinali, enquanto ela subia ao púlpito. Então dizia: “Não venho aqui falar da minha vida no circo, mas do circo da vida que é passado em Fátima.” Ilusionista profissional, Helena conhece os truques da economia clandestina. “Das 5 mil pessoas que, na época alta, trabalham em Fátima, cerca de mil são precárias.” O ordenado mínimo é regra: uma rápida consulta ao portal do Instituto de Emprego e Formação Profissional confirma-o. Mas também se paga abaixo do contratualizado. Ao sindicato chegam relatos de bradar aos céus: mães impedidas de amamentar em instituições privadas e da Igreja, jovens a ganhar um euro por cada cliente angariado para o restaurante, gente a trabalhar das seis da manhã à meia-noite, idas à casa de banho descontadas no ordenado, ou seja, “Fátima é quase um offshore para os direitos dos trabalhadores”, denunciou o sindicato. E um dia bateu à porta Armindo Vieira… Homem de feições rudes, rosto sulcado pelo sofrimento, uma doença degenerativa obrigou-o a abandonar a construção civil e a reformar-se por invalidez. Mas ele pretendia trabalhar, “sentir-se útil”. Aos 51 anos, o guarda-noturno do Consolata Hotel não contém as lágrimas. Uma e outra vez. As frases saem a custo, entrecortadas por um choro sufocado.

A história é simples: durante sete anos, Armindo Vieira não gozou férias, não recebeu subsídios de qualquer espécie, prémios de antiguidade, nada. Contas feitas, cerca de 30 mil euros terão ficado para trás. Casado, dois filhos, levava para casa cerca de 520 euros. “Sempre que levantava problemas mostravam-me a porta de saída”, recorda.

A unidade hoteleira de Fátima para a qual Armindo ainda trabalha é gerida por uma sociedade que tem como sócio individual maioritário o Instituto Missionário da Consolata. O presidente da administração é o padre Elísio de Assunção. A instituição religiosa dedica-se “à tarefa evangelizadora da Igreja, vivendo em comunhão fraterna e professando a pobreza, a castidade e a obediência no espírito das bem-aventuranças evangélicas”, lê-se na sua página oficial. Num intervalo dessa missão, entre julho de 2004 e agosto de 2005, teve uma conta no BPN. Mas uma burla praticada pelo gestor bancário, a pretexto de aplicações financeiras, obrigou o Estado e os contribuintes a devolver aos missionários da Consolata cerca de 4,5 milhões de euros.

Armindo Vieira sempre ouvira dizer que padres e freiras “tinham leis diferentes”. Viu-se desesperado. A mulher com ordenado mínimo, a filha a estudar em Lisboa, ele sem poder esticar o dinheiro. “Sabe o que é chegar ao fim do mês, abrir o porta-moedas e só lá ter mesmo moedas? Até a bica deixei de beber…” Tentaram iludi-lo, sentiu-se pressionado a aceitar uma bagatela para esquecer o passado. Recusou “esmolas”. Humilhado, insultado, diz, de olhos rasos de água, ter sofrido retaliações. Passou-lhe então tudo pela cabeça e quase iniciou uma greve de fome. Encaminharam-no para o sindicato e filiou-se.

Pressionada, a entidade patronal regularizou tudo desde 2015 para cá, exceto a antiguidade. Armindo teve direito a férias, aumento no ordenado. O resto, “que é muito”, continua por liquidar, embora o advogado da sociedade garanta terem sido cumpridas todas as obrigações contratuais. O caso foi também denunciado aos serviços da Autoridade para as Condições de Trabalho em Tomar, mas esta nem à VISÃO respondeu.

Armindo Vieira continua, por estes dias, sob o efeito de antidepressivos. Chora, suplica atenção quando desfia o seu rosário. “Aqui, o trabalhador é carne para canhão. Quem vem de fora pensa que isto é uma terra santa, mas quem trabalha com estas instituições é que sofre. O Deus desta gente é o dinheiro”, atalha, por ele, a sindicalista Helena Cardinali, ressalvando as exceções, para as quais “chegam os dedos de uma mão”.

Católico praticante, Armindo continua a ir à missa. “Mas senti um grande abalo na minha fé”, reconhece. Sentado na igreja, escuta as homilias e revolvem-se as tripas. “O discurso é o mesmo do sindicato, mas os padres não fazem nada, é só treta. Para mim, não há milagres”, desabafa, enxugando as lágrimas sem cessar e tentando recuperar o fôlego. “Isto aqui em Fátima não é só rosas, há muitos espinhos. Se andasse toda a gente descalça era uma tragédia”, desabafa. O caso de Armindo foi o mais grave que passou pelas mãos de Helena Cardinali. Mas ela jamais esquecerá a resposta ouvida durante um encontro na reitoria, com os responsáveis do santuário, quando tentava solucionar o problema de outra trabalhadora: “Isto aqui é zona branca. Não se aplicam leis.”

 

Fonte: Visão

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