O Brasil contemporâneo mostra-se em Lisboa em 50 projetos e uma livraria especializada
Em Lisboa, o MUDE continua fora de portas e inaugurou este sábado, 23, no Palácio dos Condes da Calheta a exposição Como se Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje. Dos saberes indígenas às embalagens da sociedade de consumo, aqui se mostra como o design tem servido para promover, e questionar também, ideias como identidade, progresso, inclusão, património e cidadania
falta de tradução na língua portuguesa, tanto portugueses como brasileiros se servem da palavra design para falar de processo criativo. Quando, há dois anos, o Museu do Design e da Moda – Coleção Francisco Capelo, em Lisboa, organizou a exposição Como se Pronuncia Design em Português, que fazia um levantamento de 100 anos do mobiliário em Portugal, deixou intencionalmente a interrogação em aberto, para mostrar, agora, a cultura material do Brasil contemporâneo, e a forma como produtos, serviços ou propostas falam da realidade política, económica e social desse país de dimensão continental, com uma população multiétnica, a maior biodiversidade do planeta, o quinto maior mercado interno do mundo e uma sociedade brutalmente desigual. Que neste século viveu um crescimento económico, a democratização do consumo e conquistas sociais sem precedentes, mas também uma recessão e uma grave crise político-institucional.
A ocupar as várias salas do Palácio dos Condes da Calheta, dentro do Jardim Botânico Tropical, que serve de casa ao MUDE até à reabertura do edifício na Rua Augusta, ainda em obras, estão 50 projetos de autores, estúdios e coletivos das mais diversas disciplinas e abordagens do design – da tipografia ao mobiliário, da moda à arquitetura, da publicação independente aos produtos de grande consumo – que têm como clientes tribos indígenas, grupos de ativistas e iniciativas de cidadãos, mas também grandes empresas como a Embraer e marcas conhecidas como a Havaianas, a Natura ou a Whirlpool. Brasil Hoje“é uma exposição sobre o design e o Brasil do século XXI, que explora e celebra a complexidade de um país e de uma atividade”, enfatiza Frederico Duarte, investigador e curador, que tem vindo a estudar, no âmbito do seu doutoramento, a cultura e o design brasileiros. “Muitas vezes pensamos no design como uma manifestação autoral, é muito raro que isso aconteça”, afirma Frederico Duarte. “Os museus do design são excentricidades porque são exceções. A maior parte das coisas que temos à nossa volta são feitas para um cliente, com todas as preocupações e as contingências”.
Na entrada do Palácio da Calheta, a sala de estar pronta para levar, com mobiliário desenhado por Fernando Jaeger, lança o repto sobre o que é uma exposição de design – uma loja sem preços ou outra coisa mais? A resposta vem logo a seguir. Nas escadas que levam ao primeiro andar, lê-se Missão de Paz com Exército nas Favelas?. A parede de protestos do coletivo anónimo Projetação, nascido nas manifestações de 2013 no Rio de Janeiro, serve de antecâmara às duas primeiras salas que, sob o tema Espaço Público, traz a rua para dentro da exposição. “Os designers aqui representados são os protagonistas. São eles que, nos serviços que prestam, nas iniciativas que criam ou nas pesquisas que conduzem, mostram como promovem, mas também questionam, ideias como progresso, consumo, inclusão ou cidadania.” O mapa Move, desenhado pela Verdi Design para a cidade de Belo Horizonte, é caso raro num país onde a maioria das cidades não tem um mapa da rede de transportes. E se uma pulseira eletrónica não é um objeto que pensamos que é “desenhado”, há todo um contexto que justifica que a SAC24 esteja aqui: o Brasil é o país onde se morre mais nas prisões e usar uma tornozeleira pode salvar a vida. Já a Hacker, uma bomba de água fácil de montar e com um custo acessível, resultou da iniciativa da Flui Coletivo que decidiu dar uma resposta à crise que afetou a cidade de São Paulo em 2014. Casa Vila Matilde é o único projeto de arquitetura em exposição. De um lado, um dossier com quatro micas apenas, contém o desenho da casa de 4,8 metros de largura por 25 de profundidade em Vila Matilde, São Paulo, que os Terra e Tuma Arquitetos projetaram, a baixíssimo custo, para Dona Dalva Ramos. Do outro, a pilha de notícias sobre a casa publicadas no Brasil como noutros países ibero-americanos, depois da atribuição do prémio ArchDaily Building of the Year em 2016, onde o uso das expressões como “casa de arquiteto” e “mulher humilde” revelam o preconceito social.
Parte do Pavilhão do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt de 2013, abre as salas dedicadas ao Consumo. Há produtos de beleza que revolucionam pela sua embalagem (o Brasil é o país onde se gasta mais dinheiro em produtos de higiene e beleza per capita), uma prótese que é também um acessório de moda e uma máquina de lavar roupa que, além de barata, é leve, sendo fácil de transportar favela acima e até emprestar à vizinha (depois da televisão, do fogão e do frigorífico, a máquina de lavar é o objeto de maior desejo para ter em casa). Sob o tema Património, viajamos até aos bailes da comunidade negra de São Paulo nos anos 1960 e 70, através de fotografias, folhas volantes (flyers), tipos de letra e chichés (chapas) recolhidos pelo designer Danillo de Paulo, enquanto os cartazes de Divino Maravilhoso, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil eternizada na voz de Gal Costa, revelam a memória do movimento Tropicália dos anos 1960. E há ainda um documentário para ver: Marajó das Letras, de Fernanda Martins, sobre os mestres pintores de barcos do arquipélago do Marajó, no Pará, chamados abridores de letras.
As salas que guardam o maior arquivo de madeiras do país juntam aquilo a que Frederico Duarte chama de “caixa de joias”. Entre uma aplicação para Iphone, que transforma uma história de amor numa mandala em ouro, e a loja online de artes indígenas Tucum, está Xiloteca Brasilis, de Rodrigo Calixto – uma peça decorativa que é, ao mesmo tempo, um registo científico das madeiras nativas do Brasil que o próprio recolhe de obras. Já Objetos da Floresta, de Andrea Bandoni, dá nome a uma mesa de objetos à venda nos mercados tradicionais – como a língua do peixe pirarucu, utilizada como lixa, ou o tipiti, um espremedor usado para escorrer e secar mandioca – que tanto têm de exótico como de familiar. E se design é mobiliário, a cadeira Milla, o banco Caipira e o candeeiro Bossa estão aqui não como ícones, mas como exemplo de como um mesmo modelo pode servir para explorar temas e variações. E assim chegamos à livraria, uma Arca de Noé, como lhe chama Frederico Duarte, que a parceria com a FNAC tornou possível, com uma seleção de 50 livros que podem folhear-se e comprar-se a preços acessíveis, nota o curador. Em conjunto com os projetos apresentados, são uma espécie de snapshot (retrato instantâneo) do que o Brasil é hoje.
Como se Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje > Palácio Condes da Calheta > Jardim Botânico Tropical > R. General João de Almeida, 15, Lisboa > T. 21 362 0210 > 24 set-31 dez, ter-dom 10h-18h > grátis (entrada pelo Jardim Botânico €2)
Fonte: Visão